terça-feira, 6 de novembro de 2012

Livro: Cronicas de Iaça, o mundo além do olho d'agua


QUATRO
A FANTASIA TORNA-SE REAL

Katú ficou desacordado por um longo tempo. Sonhou com a mãe e o pai, e o convívio que trazia grande alegria. Ao acordar percebeu que estava deitado em uma rede de dormir, cercado por índios, e mais a frente sentada no chão batido de terra a jovem que pensava ser um sonho ou delírio momentos atrás. De alguma forma ele se sentia atraído por ela, como se a conhecesse.
Olhou para o teto, e viu que este, estava coberto de palhas, folhas e materiais da terra. Grandes varas reforçavam a estrutura. No seu interior, papagaios, macacos, tatus, patos e vários passarinhos espalhados estavam livres sem correntes ou gaiolas.
Percebeu então que estava numa maloca. Lembrou dos estudos que fazia na escola sobre as tribos indígenas e do contato que teve com vários em feiras de estudo. Virou-se para um dos lados e reconheceu rapidamente o tipiti, instrumento utilizado na feitura do tucupi, bebida de aroma e gosto forte. O tucupi é misturado com outras iguarias que dão ânimo a quem as toma.
Curioso e com a voz restabelecida, inclinou-se dirigindo uma pergunta a jovem índia da maloca onde ele se encontrava - Onde estou? Que lugar é este?
Os olhos da jovem são vibrantes e intensos, sua respiração controlada e a resposta mais ainda - Cari, você se encontra na aldeia desafortunada de Óka e esta é a maloca central - explicou a jovem continuando em seguida - Aqui nesta porção de terra cercada de verde o mal chegou, invadindo de temor os corações de muitos.
Os habitantes desta localidade aparentavam ter um sentimento de temor estampado em suas faces, viviam sempre com as lanças em punho, até terem confiança nos estrangeiros.
Ainda muito confuso com a situação, o jovem não consegue compreender as palavras da índia e insiste em mais questões - Aldeia? Óka? Que brincadeira é essa?
–– Eu não entendo, você não sabe onde está? - rebateu a índia.
–– Não, por favor... Explique - expôs Katú para a jovem.
–– Meu nome é Amiar, você se encontra no Mundo de Iaça, que outrora foi ponte segura para o seu Mundo através das águas. Hoje paira sobre ele a mão fria do curupira Abaçaí, senhor dos exércitos da noite - a índia fez uma pausa reforçando a respiração e continuou - Nossa aldeia Óka, é uma das várias que sofrem com o mal do temível Mapinguari, monstro comedor de gente enviado pelo curupira.
O Mapinguari é um gigante de mais de três metros de altura, pêlos avermelhados, pele grossa, com um olho só e uma boca enorme no meio da barriga. Suas garras destroçam árvores e seus músculos levantam pedras de mais de uma tonelada. Sempre que o Mapinguari está próximo, a terra treme.
Um calafrio percorre o escoteiro, um frio interno agonizante demais para ser descrito. É inacreditável, pensa ele. Devo estar sonhando. Com certeza é uma daquelas histórias que imagino e neste momento devo estar dormindo, logo vou acordar e voltar a ajudar minha mãe.
Mesmo com tamanha confusão mental e ainda um pouco zonzo, Katú resolveu continuar indagando a jovem índia.
Com olhos arregalados ele perguntou - Como cheguei aqui? Eu estava diante de uma luz, começou pequena, mas depois não conseguir ver mais nada, e agora estou diante de você - declarou, lembrando da cena que vivera, e em seguida repetiu a pergunta - Como cheguei aqui?
–– Você é um dos poucos Caris que conseguem entrar no clarão que une sua existência a nossa, e por motivos que só os Grandes Espíritos conhecem, você foi chamado para Iaça - explicou Amiar.
Katú começou a perceber que tudo aquilo era real, tudo que lhe havia acontecido, desde o olho d'água até a maloca e mesmo a índia a sua frente eram indícios de que não poderia estar sonhando. Como poderia um sonho ser tão perfeito assim? A sensação de tontura que ainda carregava, as palavras da índia, os animais livres a sua volta, tudo isso era forte demais para ser um sonho.
Muito confuso e curioso Katú questiona novamente - Meu nome é Eduardo Katú e não Cari. Estava acampando, sou um escoteiro e porque insiste em me chamar assim?
Mesmo que as coisas começassem a fazer sentido, aquele ainda era um mundo estranho para Katú, ao mesmo tempo as palavras vindas de Amiar eram familiares, só não conseguia saber de onde vinha tal familiaridade. No íntimo do jovem escoteiro, algo o fazia sentir a tranqüilidade de que tudo aquilo já havia feito parte dele.
Amiar levantando-se caminhou alguns passos em direção ao escoteiro, olhou firmemente com os lindos olhos cor do mais acalorado pôr-do-sol e disse: - Todos os que adentram o nosso mundo são chamados assim, hoje vários como você, estão aqui dividindo Iaça conosco. Antes eles eram poucos, hoje formam uma nação, mas há muito que não temos mais visitantes, você é o último que tivemos a oportunidade de ver chegar através da luz.
Os homens não descendentes do Mundo de Iaça são chamados de Caris, os habitantes lhes deram esse nome devido a coloração de suas peles, muitos em vários aspectos diferentes dos índios do local e dos demais habitantes naturais de Iaça.
Os Caris também se destacam em habilidade e engenhosidade na criação de veículos de transporte, além de serem ótimos navegadores.
A cabeça de Katú balançava como se não acreditasse em tudo aquilo. Amiar tomou-lhe a mão, e puxando-o, caminharam para fora da maloca com a intenção de mostrar algo a ele.
Katú olhou para trás e pôde ver que a casa do índio devia ter mais ou menos cinqüenta metros de comprimento, uma altura estimada de seis metros e a entrada de cerca de cinco metros de comprimento. Era uma construção soberba e cheia de elementos naturais a sua volta. Sem janelas nas laterais, a maloca possuía aberturas em suas extremidades, muita rústica a estrutura se encaixava bem no modo de vida do povo de Óka.
Do lado de fora, um enorme tronco com imagens de pessoas alegres celebrando ao que parecia ser e uma gravidez. Amiar percebendo que Katú olhava insistentemente para o desenho, falou - Aquela é minha mãe e a pintura na barriga dela sou eu.
Em Óka, cada nascimento era marcado por uma pintura em uma tora que era fincada na entrada da maloca a qual a criança pertencia. A pintura era feita com sangue do animal caçado pelo pai guerreiro. Amiar era por direito líder daquela aldeia, em sua costa pairava a responsabilidade de muitos, por isso o seu nascimento foi registrado na maloca central de Óka, os seus pais eram os lideres.
Katú envolvido com tudo aquilo, baixou a cabeça por alguns instantes, depois tirou a atenção da maloca, levantando o olhar para o alto, viu que Amiar apontava com o dedo para o céu indicando que Katú deveria olhar.
Tal foi a surpresa do escoteiro quando percebeu que no céu havia uma divisão de escuro e claro ao longe. De um lado o sol brilhava formoso e imponente e do outro a lua clareava o véu escuro. A visão parecia uma fantasia feita por um profissional da área de efeitos especiais para alguns desses filmes que rendem milhões de bilheteria, acreditar seria o passo seguinte para Katú, o que não era tarefa fácil.
Ele olhava, mas não acreditava. Era difícil crer naquela cena. Para o escoteiro aquilo não poderia estar acontecendo, voltou a duvidar novamente - Como isso é possível? - aquela cena reforçava para ele a idéia de que tudo aquilo era um sonho novamente.
–– Em nosso mundo, Coaraci, o Sol e Jaci, a Lua, convivem em harmonia, trocam de lugar sempre em perfeita sincronia, onde cada um assume seu posto diante das necessidades de Iaça - explicou Amiar.
Em Iaça os elementos da terra, convivem em perfeita sincronia, provendo o alimento e a energia no local certo onde o povo precisa. Árvores dão frutos com Coaraci, e Jaci ajuda pescadores de todos os cantos a ter a melhor rede de suas vidas. O vento sopra formoso e na medida certa, a chuva que cai em abundância, várias vezes se faz presente para o fim dos desertos de toda ordem.
Esse equilíbrio era um mistério para os povos de Iaça. No início dos tempos, onde a vida começava a pulsar, Coaraci e Jaci contribuíram para que a natureza ganhasse força e vibração. Dizem que os grandes índios conheciam bem o que acontecia, mas isso é mais lenda do que realidade. Hoje os mais novos tendem a confiar mais em seu julgamento do que em histórias perdidas no tempo.
Katú chegou a terra de Iaça em um momento delicado, a harmonia que tanto era vivenciada, estava em desequilíbrio. Os Ókanos buscaram dos mais velhos a informação sobre o que estava acontecendo, mas infelizmente não obtiveram a resposta que precisavam.
–– No seu Mundo, Sol e Lua estão separados, isto ocorreu há muito tempo. O afastamento é prejudicial, pois cria o clima que mais contribui para destruição. O egoísmo que gera o conflito pelas coisas limitadas é criador de separação que se manifesta até mesmo nas coisas da vida, e aqui esse egoísmo parece que chegou - acrescentou Amiar.
–– Como assim chegou? - perguntou Katú.
–– Jaci e Coaraci parecem não estar se entendendo. A mudança entre eles ocorre de maneira quase imperceptível por nós - explicou Amiar.
Amiar manifestava preocupação com o equilíbrio. Jaci parecia estar em divergências com Coaraci. Iaça há muito tinha a harmonia de seus ventos, chuva, raio de Sol e Lua. Naquele instante Iaça apresentava sofrimento, os índios podiam senti-la chorando, a terra pedia socorro. A interferência dos Caris na paisagem alterou drasticamente a rotina dos seres do mundo.
Alguns anciões de Óka acreditavam que os Caris eram responsáveis pelo que estava acontecendo também, mas não gostavam de ter relações mais próximas com eles, preferiam meditar sobre a natureza ao se deslocarem para dialogar.
Katú franziu a testa com extrema curiosidade e com a voz em tom de desconfiança indagou - Acho estranho você saber tanto sobre o meu Mundo.
Amiar esperta como ela só, tratou de responder com energia a pergunta de Katú - Eu já o visitei várias vezes. Confesso que cada vez que viajava até o seu Mundo, mais tristeza cultivava dentro de mim pelo que vocês fizeram, pela falta de cuidado dos povos da Terra com a natureza.
–– Nisso você tem razão! - exclamou Katú.
–– Ainda tem mais, o recurso mais sagrado para nós e desperdiçado por vocês - disse Amiar.
–– E qual seria esse recurso? - perguntou Katú.
–– A água, essência da vida, de onde todos nós viemos, é dela a ligação que temos com tudo que esta em nossa volta, aqui chamamos a água de I - concluiu Amiar.
! - exclamou Katú - Curioso como chamam a água neste Mundo.
"No início é difícil, mas com o tempo você se acostuma." Eduardo Katú quando viu pela primeira vez a Lua e o Sol dividindo o espaço do céu de Iaça.

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