sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Crônicas de Iaça - JJAlves


CINCO
CONTE COMIGO


Que espanto o escoteiro teve com tudo aquilo, como era difícil experimentar tamanha mudança. Em nossa Terra essas coisas são chamadas de fantasias, lidas e relatadas por pessoas de diferentes idades e nacionalidades. Era fato para Katú, que tudo aquilo a sua frente era real, assim como eu e você, e quando se está diante do fato é impossível negá-lo.
Pensativo sobre tudo que havia lhe acontecido continuou a conversa - Quando acordei percebi medo nos olhos dos outros. Este Mapinguari do qual você falou é tão cruel assim?
Amiar estava triste com tudo aquilo, afinal o Mapinguari tinha lhe causado grande dor, com a voz abalada respondeu - A criatura não parece apresentar sentimentos, nos pune sem termos feito nada para levantar sua ira. Estamos tentando nos defender, mas sua pele é dura como as grandes árvores de Araxá.
As grandes árvores de Araxá abrigam cidades inteiras de sacis, povo arredio e brincalhão. Elas possuem uma consistência invejada, são antiguíssimas em Iaça, quando se deseja construir lanças fortes e barcos resistentes para atacar seres poderosos, as árvores de Araxá são a matéria-prima ideal.
Já os sacis, são um povo de uma perna só, de pele bem negra, olhos brancos igual a leite líquido. Eles adoram o fumo, carregam para isso um enorme cachimbo. Juntamente com os curupiras eles dominam as forças da natureza e produzem enorme magia contra aqueles que ameaçam o verde de Iaça.
O olhar de Amiar era profundo, em um momento abaixou-se e agarrou um punhado de terra, abriu a mão e conforme o vento lhe soprava, falou: - Ibi. Temos vivido nestas terras desde o início dos tempos, meus pais eram os senhores desta aldeia, o sangue deles foi derramado aqui também e o Mapinguari foi o responsável.
Foi uma grande batalha, mas ao final os pais de Amiar sucumbiram frente ao ódio devastador do Mapinguari, a pequena Amiar na época tentou defendê-los, mas seus ataques eram em vão.
Depois de matar os pais de Amiar, o Mapinguari poupou a jovem criança, deixando-a com as dores da ausência dos pais, uma dor que ela deveria carregar para todo o sempre.
Boa parte do que aconteceu naquele dia foi apagado da mente de Amiar pelo trauma do momento. Os mais velhos através de ingredientes retirados dos animais e da mata, tentaram reavivar a memória da índia, para que pudessem saber o que aconteceu realmente, mas não tiveram sucesso.
Ficou claro para Katú a gravidade do problema, mas como ávido que é, perguntou novamente a Amiar com intuito de ajudá-la. Em sua mente aquilo tudo estava cada vez mais se tornando real, ele começara a se envolver -Como podemos derrotá-lo?
–– Ele é praticamente indestrutível! Outros Caris caçadores tentaram antes de nós, os tiros de suas 'lanças de fogo' apenas o arranhavam.
–– "Lança de fogo15?" - murmurou Katú diante das palavras de Amiar, enquanto estava com a mão esquerda coçando a cabeça e com aquele olhar recheado de idéias - Deve haver um jeito de vencê-lo, sempre há! - reforçou o argumento para a índia, em seguida segurou a mão de Amiar, tentando passar confiança.
–– Eu não entendo - disse Amiar olhando para Katú - Eu não entendo por que você se importa? Afinal esta não é sua casa, seu povo e muito menos seu Mundo.
–– Agora é! - redarguiu Katú - Confesso que sempre sonhei com algo assim. De alguma forma começo a perceber que tudo isto é real e o mais importante, vocês me ajudaram, acho que o mínimo que posso fazer e retribuir a gentileza. Peço apenas que depois de lhe ajudar, você possa me indicar o caminho para minha casa, apesar de não ser um Mundo perfeito, sinto falta dos que deixei em minha cidade.
–– Farei o possível com meu coração e espírito, jovem Cari - exclamou Amiar.
Katú percebeu que a jovem índia não carregava a certeza na sua voz, inquieto como ele só, questionou novamente - Não sinto firmeza em suas palavras, o que há?
–– Quando digo que farei tudo ao meu alcance, falo com o coração, mas não é tão simples assim - comentou Amiar.
–– Não entendo, acho que esconde algo, se vamos nos ajudar, por favor, diga-me a verdade - justificou Katú diante de Amiar.
–– Para ser sincera, mesmo nos tempos antigos nunca soubemos de um Cari que conseguiu voltar para o seu Mundo.
Katú inquieto perguntou novamente - Então como vocês conseguem nos visitar?
–– O Equilíbrio é mantido pelos Grandes Espíritos que governam Iaça, eles temem que outros como você, que puderam ver Iaça, retornem para explorar nossos mais preciosos bens, a magia e conhecimentos dos antigos índios.
Cabisbaixo Katú sentou-se no chão de terra, e repetiu o gesto de Amiar, capturou um punhado de terra na mão e lembrou-se do lar que tinha na Terra. Sorriu levemente, buscou forças, e apertando com a mão cheia de terra juntamente com a mão de Amiar, disse: - Se você não desistir de mim eu também não desistirei do meu lar, que este gesto possa fortalecer o laço entre nós.
Os dois balançaram a cabeça em gesto de confiança. Amiar clareava a cena com seus lindos olhos e largo sorriso, Katú preenchia a cena com o seu otimismo.
Assim, a chuva desceu do céu, caindo como poesia, molhando os dois e a aldeia. A chuva escorreu pelo rosto de Katú, onde uma lágrima estava sendo derramada, expressando uma mistura de tristeza, alegria e esperança.
Depois da promessa que fizeram em silêncio, Amiar sentiu que o momento havia chegado e que precisava dar uma resposta aos seus pais, sua aldeia dependia da sua atitude.
Em muitas ocasiões o peso da responsabilidade pairava sobre sua lança, era difícil sempre ter as respostas para os males do povo, e naquele momento a chegada de Katú lhe dera um sinal que poderia mudar algo na vida do povo de Óka.
A jovem fez uma pausa nos pensamentos, com o corpo molhando pelo toró16, olhou para uma criança a sua frente, a criança lhe retribuiu com um sorriso lindo. A pele da criança estava repleta de pintura feita de urucum, Amiar sorriu de volta desejando intimamente que tudo aquilo continuasse preservado, então olhou para Katú e falou: — Vamos perguntar ao conselho dos anciões, vamos para o Nheengaba17 falar com a velha sobre o Mapinguari, mas antes, é preciso descansar, você ficará na maloca no centro de Óka recuperando suas energias.
–– Tudo bem - disse Katú - Quem é essa criança? - perguntou em seguida.
–– É Aracê - respondeu Amiar.
–– E aquele que brinca com ela? Parece ser um pequeno guerreiro - perguntou Katú vendo que a pequena índia estava feliz com a presença do indiozinho.
–– Aquele é Kumin, muito esperto e cheio de energia. Kumin sempre cuida de Aracê - respondeu.
Amiar levou Katú para a maloca central onde poderia descansar. Deitado teve a oportunidade de comer de uma farinha parecida com pipoca, a qual os índios chamavam de tapioca. O açaí era prato principal naquela aldeia, sem nenhum tipo de açúcar, tirado diretamente do fruto e servido em uma cuia feita de coco. Os índios depois de descascar toda a superfície do coco e beberem sua água cheia de nutrientes, raspavam a cuia e pintavam-na com imagens de Óka.
Katú aproveitou para conversar com outros índios sobre os seus costumes, explicar um pouco sobre os instrumentos que carregava e a roupa que vestia. Os índios ficaram curiosos com o uniforme, o desenho em forma de búfalo da bandeira presa ao bastão e principalmente o sapato repleto de fios que entravam e saiam de orifícios.
Katú lhes disse que o nome daqueles fios era cadarço. Um indiozinho mais novo gostara tanto do nome que não parava de pronunciá-lo, a ponto de irritar um guerreiro com pouca paciência.
–– Cadarço! Cadarço! - gritava o indiozinho enquanto rodopiava em volta de si mesmo.
Assim, ficaram durante algum tempo, conversando sobre os costumes de Óka e bebendo uma grande quantidade de açaí.
"O solo de Iaça não nos pertence, assim como o céu e tudo mais. No entanto, somos seus moradores e precisamos cuidar bem dessas riquezas". Amiar líder dos índios de Óka

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